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quinta-feira, 28 de outubro de 2010


Naquela fila nos CTT, nas costas do anterior, fazia desenhos da vida. Como num screensaver aleatório, apareciam imagens sobre os mais variados temas: a política, o país, o meu trabalho, as férias que não cheguei a ter, as promessas cumpridas e as outras, o tempo e a falta dele, as letras que componho e quero compor, projectos adiados… 
As filas (ou bichas) têm esta coisa fantástica: torna-nos espectadores, peões sem influência nas conversas, nas nossas próprias conversas.
Estava a ficar farto de esperar e pensei em sair… resisti! Afinal de contas, o que lá fui fazer é importante, já tinha esperado algum tempo, e sair naquele momento pareceu-me, além de pouco inteligente, difícil de justificar para mim próprio.

Pela porta, surge de repente, uma figura conhecida. Do alto dos seus saltos, de olhar ainda mais claro do que aquilo que me lembrava, e embebida num conversa telefónica, vinha ela… e que alta que me pareceu ela. Mudei o destino do meu olhar, esboçando um sorriso meio de gozo, meio de surpreendido, meio de fodido e cheguei mesmo a pensar "não me faltava mais nada".

A voz dela ouvia-se cada vez mais perto. Percebi que estava mesmo a interromper a passagem… olhei, não a conheci, e afastei-me. Sem baixar os olhos, recuei! 
Uma vez mais aquela vida cruzou a minha, mas desta vez, cedi a passagem. Não estorvei, não me fiz de difícil, não me fiz surpreendido, não me fiz distraído, rendido ou vencido. Apenas recuei.

Do alto dos seus saltos, e que altos saltos, o seu olhar viu-me e não me viu ao mesmo tempo. Talvez surpreendida pela coincidência do momento. Talvez esquecida de qualquer momento. Talvez a cagar-se para aquele momento.
Se tremi?
Tremi!
Afinal de contas, aos livros que levamos pela vida, não arrancamos qualquer página, por mais vaga que ela seja, por mais duras, mal-escritas, mal-entendidas que sejam as palavras.
Se gostei de a ver?
Gostei! Claro que gostei.

Nas minhas costas, ela mantinha uma conversa de voz doce, enquanto eu voltava a desenhar nas costas do anterior, algumas das cenas de um passado tão longínquo… A voz pareceu-me mais perto, olhei e voltei a recuar. Ela tinha desistido de esperar e sem perda de tempo saiu pela porta, sem concluir o que quer quer seja que lá tido ido fazer.

"Estás muito bonita!" pensei. "Que a vida te seja doce!"

E lá fiquei… Fiz mais um desenho… Na legenda escrevi em cores berrantes, que tenho saudades do tempo em que te olhava e te conhecia, e que tenho pena dos dias que já não voltam, aqueles em que me olhavas, quando não existia passagem para ceder, e   também tu me conhecias… 
Pus-me de lado, sorri para a senhora que esperava como eu, comecei uma conversa de circunstância que rapidamente se tornou política. Até que chegou a minha vez, levantei o raio da multa, despedi-me com um sorriso largo para contrariar a falta de prazer da minha espera na bicha, e saí.

Acontecem-nos muitas coisas na vida. E até nas filas, completamente bloqueados, parados, zangados, a nossa vida continua a andar, continua a mudar, continua a surpreender, continua a desenhar. E nós, só temos que guardar os desenhos!

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